CAPÍTULO SEIS - O DESPERTAR DAS LEMBRANÇAS
Jerry se trancou no quarto pelo restante
do dia, ele e o corpo de seu falecido amigo, e nada foi capaz de tirá-lo de lá.
Nem a hora do almoço, nem o lanche da tarde, nem a hora do jantar, nem o fedor
crescente do cadáver canino.
Depois de desistirem de tentar contato
com o filho, seus pais visitaram a família vizinha para debater sobre o
ocorrido. Algumas ofensas, muita discussão, ameaças de processos e até mesmo alguns
objetos jogados ao chão culminaram numa negociação surpreendentemente amistosa,
alguns copos de cerveja e trocas de receitas de bolo. Frases como
"crianças são difíceis" e "Ao menos, nossos filhos estão
bem" encerraram o assunto.
É claro que Jerry não ficou sabendo de
nada disso. Também, pouco se importaria. A ele, só interessava uma coisa:
vingança. Não - retribuição. Justiça. Sim, essas eram as palavras. Não fora ele
quem começara aquilo tudo, mas ele iria terminar - do seu jeito.
O garoto não tinha ideia de onde saía
tudo aquilo, mas ao longo de todo o dia, enquanto derramava lágrimas e chorava
profusamente, sua memória se enchia de fatos muito, muito antigos. Eram fatos
de sua vida, ele tinha certeza, mas não dessa
vida. Imagens e sensações confusas passavam por sua mente como lembranças de um
filme visto numa madrugada de insônia e, de uma forma que não sabia explicar,
tudo aquilo lhe pertencia.
O homem de terno preto e chapéu coco,
socando desafetos da máfia em becos escuros, na Chicago de 1930? Era ele. O bem-sucedido
boxeador do submundo londrino do século dezenove, gastando todas as suas
recompensas em bebidas, apostas e prostitutas? Ele, outra vez. Um torturador
operando nas masmorras de um nobre escocês, em plena Idade das Trevas? Ele.
Em todas essas lembranças, havia mais
que homens. Havia sempre mais de uma identidade. Lá no fundo de cada mente, uma
outra imagem de si mesmo, refletida em cacos de vidros, nas poças de água, nos
olhos de suas vítimas. Uma imagem muito semelhante àquela que tinha diante de
si agora, no pequeno espelho sobre o criado-mudo do quarto.
Sua pele parecia ser feita de couro
grosso e pálido. Os olhos eram agudos como os de um felino, com íris vermelhas
sobre um fundo banhado em rubro. E a boca era o que havia de mais assombroso,
repleta de uma quantia exagerada de dentes pontiagudos, retorcidos e
amarelados, deixando escorregar saliva pelos cantos dos enormes lábios.
Apesar do espanto inevitável do primeiro
momento, Jerry sentia uma estranha sensação de familiaridade com tudo aquilo.
As lembranças e o reflexo no espelho despertavam uma forma de energia, correndo
por debaixo de sua pele, acelerando seu coração. E mesmo sendo incapaz de dar
nome ao que via, ele se reconhecia.
Levantou-se devagar, enxugou as lágrimas
e tomou uma decisão. Com apenas dois minutos faltando para a meia-noite, foi
enterrar seu velho amigo no pátio dos fundos da casa, enquanto uma frase se
repetia incessantemente em sua consciência:
Nunca
esqueça um débito.
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