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terça-feira, 11 de julho de 2017

Os Sonhos mais sombrios - Capítulo Seis



CAPÍTULO SEIS - O DESPERTAR DAS LEMBRANÇAS
Jerry se trancou no quarto pelo restante do dia, ele e o corpo de seu falecido amigo, e nada foi capaz de tirá-lo de lá. Nem a hora do almoço, nem o lanche da tarde, nem a hora do jantar, nem o fedor crescente do cadáver canino.
Depois de desistirem de tentar contato com o filho, seus pais visitaram a família vizinha para debater sobre o ocorrido. Algumas ofensas, muita discussão, ameaças de processos e até mesmo alguns objetos jogados ao chão culminaram numa negociação surpreendentemente amistosa, alguns copos de cerveja e trocas de receitas de bolo. Frases como "crianças são difíceis" e "Ao menos, nossos filhos estão bem" encerraram o assunto.
É claro que Jerry não ficou sabendo de nada disso. Também, pouco se importaria. A ele, só interessava uma coisa: vingança. Não - retribuição. Justiça. Sim, essas eram as palavras. Não fora ele quem começara aquilo tudo, mas ele iria terminar - do seu jeito.
O garoto não tinha ideia de onde saía tudo aquilo, mas ao longo de todo o dia, enquanto derramava lágrimas e chorava profusamente, sua memória se enchia de fatos muito, muito antigos. Eram fatos de sua vida, ele tinha certeza, mas não dessa vida. Imagens e sensações confusas passavam por sua mente como lembranças de um filme visto numa madrugada de insônia e, de uma forma que não sabia explicar, tudo aquilo lhe pertencia.
O homem de terno preto e chapéu coco, socando desafetos da máfia em becos escuros, na Chicago de 1930? Era ele. O bem-sucedido boxeador do submundo londrino do século dezenove, gastando todas as suas recompensas em bebidas, apostas e prostitutas? Ele, outra vez. Um torturador operando nas masmorras de um nobre escocês, em plena Idade das Trevas? Ele.
Em todas essas lembranças, havia mais que homens. Havia sempre mais de uma identidade. Lá no fundo de cada mente, uma outra imagem de si mesmo, refletida em cacos de vidros, nas poças de água, nos olhos de suas vítimas. Uma imagem muito semelhante àquela que tinha diante de si agora, no pequeno espelho sobre o criado-mudo do quarto.
Sua pele parecia ser feita de couro grosso e pálido. Os olhos eram agudos como os de um felino, com íris vermelhas sobre um fundo banhado em rubro. E a boca era o que havia de mais assombroso, repleta de uma quantia exagerada de dentes pontiagudos, retorcidos e amarelados, deixando escorregar saliva pelos cantos dos enormes lábios.
Apesar do espanto inevitável do primeiro momento, Jerry sentia uma estranha sensação de familiaridade com tudo aquilo. As lembranças e o reflexo no espelho despertavam uma forma de energia, correndo por debaixo de sua pele, acelerando seu coração. E mesmo sendo incapaz de dar nome ao que via, ele se reconhecia.
Levantou-se devagar, enxugou as lágrimas e tomou uma decisão. Com apenas dois minutos faltando para a meia-noite, foi enterrar seu velho amigo no pátio dos fundos da casa, enquanto uma frase se repetia incessantemente em sua consciência:
Nunca esqueça um débito.


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